Entrevista com a historiadora Alejandra Estevez - Por Adelson Vidal Alves

 

1) Professora, o que é o Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz e quais seus principais objetivos?

O CEMESF abriga o acervo da CMV-VR e o banco de dados relativo à documentação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), bem como cópias de documentos oficiais, acervos pessoais referentes ao período da ditadura militar. Vale destacar que, no que se refere ao acervo da CSN, trata-se da documentação pública, produzida no período em que a companhia era estatal. Material absolutamente relevante para a compreensão não apenas do desenvolvimento da usina mas também da cidade, que surgiu atrelada ao plano diretor da empresa.

Além da proposta de garantir a guarda da documentação histórica e preservação da memória local, o CEMESF tem como objetivos:

1) estimular o desenvolvimento de novas investigações e dar apoio àquelas já em curso;

2) incentivar a doação de acervos pessoais, garantindo as plenas condições de armazenamento e acesso;

3) reunir, organizar e disponibilizar acervos institucionais ou pessoais sobre a região;

4) realizar entrevistas com atores de relevo, com fins de registro histórico e preservação da memória;

5) fomentar ações educativas na linha de uma educação em direitos humanos;

6) subsidiar e coordenar o processo de transformação do antigo BIB, em Barra Mansa, em sítio de memória

 

2)  Quem são seus idealizadores?

O CEMESF surge de uma demanda antiga dos pesquisadores da região por acesso à documentação histórica sobre a localidade, por isso envolve múltiplos atores nesse processo. Em 2015, no bojo das investigações da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda, se efetivam finalmente as condições necessárias para a criação do centro de memória. Sob a iniciativa de um grupo de professores do Departamento Multidisciplinar da UFF Volta Redonda, o centro de memória é estruturado e sediado no Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFF. A coordenadora passa a ser a professora e antropóloga Ana Paula Poll.

 

3) Qual é a estrutura do espaço e como é o seu financiamento?

O CEMESF funciona na sala 209 do bloco A da UFF Aterrado. A sala abriga documentos físicos doados por antigos militantes, bem como acervo digital reunido de diferentes arquivos do país, como o banco de dados do acervo da CSN e da polícia política sobre a região. A sala conta com dois terminais de consulta para os pesquisadores e duas estações de trabalho para os alunos bolsistas do CEMESF realizarem seu trabalho de organização e digitalização do material documental. O projeto conta com o financiamento de bolsas de Iniciação Científica por parte da UFF e da FAPERJ.

 

4) O Centro de Memória abriga o acervo da Comissão da Verdade de Volta Redonda. Qual a importância desse documento para a história do município?

O acervo da CMV-VR é um dos mais importantes acervos guardados pelo CEMESF. Isso porque sua existência representa um passo importante no processo de justiça de transição brasileiro na região, especialmente no que se refere ao direito à verdade e à memória. As investigações da CMV-VR, desenvolvidas ao longo de mais de dois anos de trabalhos intensos, sob a coordenação do historiador Edgard Bedê, produziu um acervo testemunhal de suma importância, reunindo 96 testemunhos da verdade. A partir dessa documentação pudemos comprovar que os trabalhadores foram os primeiros e principais atingidos pela repressão política, afetando profundamente a vida das famílias operárias.

Além disso, foi possível o acesso e identificação do acervo guardado pela CSN, de caráter desconhecido até então. A partir desse trabalho é que hoje conhecemos o conteúdo das cerca de 6 mil caixas de documentos, espalhados em quatro arquivos da empresa, dando origem a um banco de dados capaz de informar ao pesquisador o que há neste acervo e onde está localizado o documento. 

 

5) Grande parte dos valores e princípios que o Centro de memória trabalha está ligada às políticas geralmente relacionadas à esquerda política. Como é a ligação de vocês com os partidos e movimentos de direita?

O CEMESF não possui entre suas preocupações e atividades o posicionamento político partidário, mas sim defende o compromisso com os valores democráticos e a justiça social. Infelizmente, o processo de justiça de transição no Brasil resta ainda incompleto e a luta pelos direitos humanos é associada ao campo da esquerda, quando deveria ser entendida como uma questão de suma relevância para a sociedade como um todo e enfrentado de forma séria pelos governos. O passado que não passa. O passado que devemos passar a limpo. O trabalho do CEMESF é contribuir com esse compromisso democrático, que deveria ser defendido por todos os partidos empenhados na defesa da democracia, como uma política de Estado. Desde a criação do CEMESF, buscamos estabelecer uma interlocução com órgãos de governo, como a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ por exemplo. Esta Comissão tem uma composição diversa, considerando o espectro político ideológico de seus integrantes. No plano local, também buscamos uma aproximação com as instâncias municipais, especialmente a partir do diálogo com a Fundação de Cultura de Barra Mansa, responsável pelo espaço do Parque da Cidade, local de relevância histórica relacionado ao período da ditadura militar. Portanto, o CEMESF não busca estabelecer relações com partidos políticos, mas sim com instituições, públicas ou privadas, com o intuito de contribuir para o amadurecimento e avanço das políticas públicas de memória no país.

 

6) Como você responderia aos que acusam o espaço de ser na verdade uma forma de difundir personagens e valores ideológicos da esquerda?

Não há melhor resposta que convidá-los para conhecer nosso trabalho de perto, conhecer os projetos de extensão que desenvolvemos fora do espaço estritamente acadêmico. O CEMESF guarda uma parte da história de nosso país e de nossa cidade. Atualmente, contamos com documentos de trabalhadores perseguidos pelo regime ditatorial, mas também com documentos oficiais produzidos pela polícia política. Os documentos carregam múltiplas versões sobre o período militar. Cabem aos pesquisadores, munidos do método científico mais adequado, formular suas interpretações, estabelecer suas críticas, iluminar um ou outro ator histórico.

Além disso, até bem pouco tempo atrás, os cidadãos de Volta Redonda e Barra Mansa não conheciam alguns personagens históricos que, acreditamos, deveriam ter mais visibilidade devido à sua importância histórica. Esse é o caso do operário metalúrgico Genival Luiz da Silva, que dá nome ao centro de memória. Genival foi membro do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda e teve seu mandato cassado logo após o Golpe e novamente antes da decretação do AI-5 (1968). Acreditamos ser importante evocar sua memória, ainda pouco conhecida, sobretudo em uma região onde a memória operária dos anos 1980, com as históricas greves dos metalúrgicos, é tão conhecida e valorizada. Os direitos são fruto das lutas sociais e Genival deu uma contribuição enorme para a classe trabalhadora da região para a conquista e garantia desses direitos. Além disso, a história de Genival nos lembra, de forma crítica, das violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura em nossa região, como a violação ao direito à liberdade de associação, liberdade de consciência, liberdade de expressão, direito de ir e vir e direito à integridade física e psicológica, contribuindo assim para uma cultura do "nunca mais".

 

7) Recentemente houve um episódio polêmico envolvendo o espaço e um parlamentar bolsonarista. Como foi isso?

Não me sinto à vontade para responder. Os processos ainda estão em andamento. 

 

8) Como você avalia a valorização das Universidades e das pesquisas atualmente no Brasil?

Atualmente, infelizmente, observamos o desmonte de uma série de políticas voltadas para a educação pública de qualidade e também das políticas de memória e direitos humanos. A universidade pública, em primeiro lugar, possui um compromisso com a sociedade. Ela deve ser capaz, portanto, de observar as demandas sociais e colocar-se a seu serviço, elaborando instrumentos de ação e interpretação da realidade, a partir de projetos e, eventualmente, recomendações ao Estado. Nesse sentido, a tríade ensino, pesquisa e extensão é o sustentáculo mais importante que estrutura todo o corpo universitário. Em segundo lugar, esta missão das universidades públicas contribui para a conformação de uma cultura em direitos humanos, capaz de educar para o respeito à diversidade de credo, gênero, raça, ideológica e  social. Os sucessivos cortes de recursos destinados à educação vêm afetando de forma dramática o cotidiano das universidades públicas e, no caso do CEMESF, vem impactando no número de bolsas de IC, o que compromete o andamento dos trabalhos. Em 2018 contávamos com 10 bolsas de IC e atualmente dispomos de apenas 4 bolsas. Um corte de 60%. Isso para mencionar apenas um exemplo particular. Felizmente, contamos com alunos comprometidos com o CEMESF, que continuam realizando seu trabalho, mesmo sem o recebimento de bolsas. No entanto, o corte dos recursos, sobretudo voltados para a área das Ciências Humanas, vêm afetando inúmeros núcleos universitários que se vêem sem as condições adequadas para dar andamento a seus trabalhos.

 

9) Vocês deixam claro que valorizam os direitos humanos como um princípio. Poderia fazer uma breve análise histórica e da atual situação dos direitos humanos no nosso país?

No Brasil, a luta pelos direitos humanos, tal como a entendemos hoje, começou no contexto da ditadura militar, especialmente a partir das denúncias de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados praticadas por agentes do Estado efetuadas por parte dos ex-presos políticos e seus familiares e de algumas instituições de defesa dos direitos humanos. Merecem destaque a ação do Grupo Tortura Nunca Mais e do projeto Brasil Nunca Mais, sob a iniciativa da Arquidiocese de São Paulo. Em nossa região, o bispo Dom Waldyr Calheiros foi uma figura central na defesa dos direitos humanos durante e após a ditadura.

No entanto, em nosso país, ao invés da implementação de medidas que visassem restituir o direito à verdade e à memória e promover a reconciliação nacional através da efetivação da justiça, observamos, ao contrário, a instalação de uma "política do silenciamento", como a denominam diversos pesquisadores e militantes de direitos humanos. Nosso processo de reabertura política e transição para a democracia se deu sob os limites da Lei de Anistia. Esta lei, que propõe o esquecimento dos crimes praticados contra a população por agentes a serviço do Estado, permanece como um "entulho autoritário", dando lugar à continuidade das violações no tempo presente, através da prática de tortura em espaços de privação de liberdade,dos assassinatos muitas vezes mascarados pelo instrumento legal dos "autos de resistência" e dos desaparecimentos forçados como no conhecido caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo. Uma política do consenso emergiu, afinal, como estratégia mais adequada para a reconciliação entre vítimas e violadores, condenando as gerações futuras ao desconhecimento sobre seu passado e ao desinteresse pelas questões políticas nacionais.

Os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e das diversas comissões da verdade que se disseminaram, entre 2013 e 2015, tiveram o papel de reativar o debate em torno do tema da memória, verdade e justiça em todo o país. Em nossa região não foi diferente. O relatório da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda, ao longo de suas quase 600 páginas, dá conta de um conjunto de violações que foram sistematicamente praticadas contra a classe trabalhadora, setores católicos progressistas, militantes da esquerda revolucionária e até mesmo militares de baixa patente. Tais investigações contribuíram, ainda, para alargar a cronologia tradicional da ditadura (finda em 1985) com o episódio do assassinato dos três operários no interior da CSN na histórica Greve de 1988.

Talvez por isso mesmo, concomitante ao processo incitado pelas comissões da verdade, tem lugar uma onda revisionista e negacionista em todo o país, que culmina na eleição de Bolsonaro à presidência da república. Na contramão da história no que se refere ao avanço das políticas de memória no país, implementadas desde o governo FHC com a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e reforçadas especialmente no governo Dilma, o atual presidente não apenas homenageia publicamente um ex-torturador da ditadura, como vem promovendo o desmonte dos principais órgãos dedicados às políticas de memória e direitos humanos, como realizou com o esvaziamento da Comissão de Anistia, órgão dedicado a reparar materialmente as vítimas de torturas e  aos familiares dos mortos e desaparecidos.

 

10) Explique para nós a importância de um espaço como o do centro de memória para a cidade de Volta Redonda

Em primeiro lugar, o trabalho do centro de memória contribui para o aprofundamento do conhecimento sobre o funcionamento do aparato repressivo de Estado durante a ditadura e sobre os atores e lutas sociais travadas contra o regime. Em segundo lugar, vale destacar que o estudo sobre este período conecta de forma íntima a história das cidades de Volta Redonda e Barra Mansa, uma vez que esta última abrigou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, principal centro de perseguição e tortura da região sul fluminense. Devido a esse passado indigesto é que foi firmado o Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público Federal e a Prefeitura de Barra Mansa, de maneira a garantir a preservação da memória, a criação de um espaço de exposição destinado a narrar os acontecimentos históricos desse período e de promoção dos direitos humanos e dos valores democráticos. Em terceiro lugar, através dos projetos de extensão atualmente em curso - visitas guiadas ao antigo BIB, DH nas escolas e Cine Arquivo - o CEMESF vem desenvolvendo ações no sentido de divulgar o resultado das investigações da CMV-VR, especialmente junto aos estudantes da rede pública de Volta Redonda e Barra Mansa, na linha de uma educação em direitos humanos. Por tudo isso, é fundamental o envolvimento de toda a população, ouvir todos os setores, aqueles favoráveis à construção de um espaço de memória como o que começa a ser estruturado no atual Parque da Cidade, mas também aqueles mais reticentes quanto à proposta e, mesmo, aqueles setores contrários.

 

11) Para terminar: você teme pelo futuro de espaços como esse diante do atual quadro político de elevação de forças políticas de extrema-direita?

Sem dúvida, o desmonte das políticas públicas de memória, como mencionado, vem ameaçando a continuidade de uma série de projetos e espaços de memória. No entanto, as universidades, através de seus núcleos e projetos, parecem vir se constituindo como lócus privilegiado para o avanço das iniciativas alavancados pelas comissões da verdade em diversas localidades do país. As universidades, como espaço da crítica e da liberdade de pensamento, vêm dando uma grande contribuição para o campo, ao lado da ação incansável dos movimentos por memória, verdade e justiça. Em nossa região, é sobretudo através do trabalho desenvolvido pelo CEMESF que vimos conseguindo não apenas aprofundar os estudos sobre a temática, mas também ativar uma rede de sobreviventes da ditadura, educadores, estudantes e artistas que vem demonstrando uma potência e criatividade para enfrentar as forças conservadoras em âmbito local e nacional. A memória fala sempre sobre o tempo presente e nos insta a posicionar-nos em relação a ele. Ao olhar para o passado, nos convida a refletir sobre o que queremos para nosso futuro. Mas isso precisa ser feito sempre em uma perspectiva coletiva, nunca individual.

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